Como não há dados oficiais sobre linchamentos no Brasil, os raros estudos existentes sobre o tema se baseiam unicamente nos casos veiculados na imprensa. E, neste sentido, dados levantados pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) apontam que, de 1980 a 2006, ocorreram mais de 1.100 casos de linchamento no país.
Segundo o estudo, mais de 30% dos linchamentos termina com a morte do agredido, sendo que os principais motivos são roubo, seqüestro, homicídio, estupro e atentado violento ao pudor.
Embora o linchador deva responder pelo crime que praticou (homicídio, lesão corporal leve, grave ou gravíssima, etc…), dificilmente há punição aos responsáveis, até mesmo pela dificuldade na identificação dos agressores.
Na verdade, é o descaso na investigação dos linchamentos que impede a sanção dos infratores, pois reina a reprovável idéia que o linchamento de um suposto criminoso é remédio para as mazelas da sociedade.
Aliás, é errônea também a concepção que linchamentos solucionariam o problema da violência urbana. A eliminação sumária de criminosos jamais se mostrou eficaz no combate à criminalidade.
No Estado Democrático de Direito cabe ao Estado o direito de punir (jus puniendi), não podendo o cidadão de forma alguma, mesmo que o bem ofendido seja próprio, realizar a autotutela e tomar para si um direito que não é posto à disposição da sociedade.
Somente garantindo-se ao infrator o devido processo legal (artigo 5º, LIV da Constituição Federal), respeitando-se o contraditório e a ampla defesa (artigo 5º, LV da CF), é que existe efetivamente julgamento com justiça.
Inclusive, o objetivo da sanção penal não é retribuir o mal causado com o sofrimento do criminoso, mas sim intimidar potenciais criminosos e retribuir o mal do crime com uma pena eficaz, com objetivo principal de ressocializá-lo.
Já nos linchamentos a punição não guarda qualquer proporcionalidade com o mal cometido (se é que foi cometido) e mais, no linchamento o arremedo de julgamento é feito pelo mesmo grupo que investiga, que acusa, que defende e que executa a pena, sem qualquer chance de defesa ao agredido.
Em 1893, sobre os linchamentos de negros nos EUA, o jornalista americano G. L Godkin escreveu que “o homem é o único animal capaz de tirar prazer da tortura e morte de membros de sua própria espécie. Arriscamo-nos a afirmar que parte das pessoas em um linchamento está lá como em uma briga de galo, para satisfação dos instintos mais baixos e degradantes da humanidade.”
Apesar dos linchamentos serem freqüentes, só se discute com profundidade o assunto quando algum caso ganha grande repercussão na mídia. E, neste ano, dois casos já suscitaram debates acalorados.
No primeiro deles, ocorrido no inicio do ano, um adolescente de 16 anos, após cometer um assalto, foi agredido e preso a um poste com uma trava de bicicleta no pescoço.
O caso ganhou mais notoriedade em razão do polêmico comentário da jornalista Rachel Sheherazade do que pela agressão em si. Na oportunidade, a jornalista foi contundente ao afirmar que a atitude dos vingadores seria compreensível, chegando a sugerir de forma irônica que os “defensores do adolescente” deveriam adotar bandidos.
E, no início do mês maio, a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, foi espancada até a morte no Guarujá (SP), em razão da falsa notícia de que uma seqüestradora de crianças atuava na região. Apurou-se depois que sequer seqüestradora havia.
Em razão da notória inocência da Fabiane, alguns articulistas até tentaram “culpar” Sheherazade pela morte da dona de casa, alegando que a jornalista teria incitado linchamentos pelo país a fora.
Todavia, os fatores que desencadeiam os linchamentos são de outra ordem.
Para a socióloga e pesquisadora do NEV/USP Ariadne Natal, o linchamento é resultado de “um descrédito da população com as instituições responsáveis pela manutenção do estado de direito”. Já para o sociólogo José de Souza Martins a falência do Estado não explica por completo os linchamentos. O componente psicológico da reação coletiva eufórica, súbita, irracional sobrepondo-se a vontade individual, explicaria melhor o fenômeno.
Certamente não foi o discurso de Sheherazade que motivou os linchadores do Guarujá. Mas, também é certo que não, não é nada compreensível que cidadãos, independentemente da euforia do momento e do descrédito nas instituições, passem a agir como animais, movidos por um espírito de vingança, para exercer um direito (de julgar e punir) que, repita-se, jamais lhes foi concedido.
Ou estaria errado o ensinamento de Cristo: “Ouvistes que foi dito: Olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo: não resistais ao perverso; mas, a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra; e, ao que quer demandar contigo e tirar-te a túnica, deixa-lhe também a capa. Se alguém te obrigar a andar uma milha, vai com ele duas (Mateus 5:38-41)”?
Não, não está!
Dib Kfouri Neto
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