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JUDICIALIZAÇÃO DO PARTO.

Por Maria Fernanda U. Galheigo

OAB/SP 375.875


No último mês de maio, a deputada estadual Janina Paschoal (PSL/SP) visitou a câmara técnica de Ginecologia e Obstetrícia do CREMESP explicando seu projeto de lei concernente a novas garantias para as parturientes atendidas pelo SUS no Estado de São Paulo. Segundo o projeto, a gestante poderá optar pelo parto cirúrgico a partir da trigésima nona semana de gestação, e o hospital estará automaticamente obrigado a tal. Por outro lado, garante-se, também, às parturientes em atendimento por parto normal, o direito à analgesia. Durante a reunião os representantes da classe de especialistas adiantaram que, muito provavelmente, a infraestrutura e oferta de fármacos dos hospitais da rede pública sejam um impedimento ao cumprimento de tais garantias. Friso que trata-se, por enquanto, de um projeto de lei, ainda em tramitação na Assembleia Legislativa do Estado.

No Rio de Janeiro, por outro lado, o CREMERJ publicou resolução (RES 293/19) proibindo os profissionais médicos de assinarem qualquer documento sobre o parto que concorde com sua não-intervenção. Ou seja: o médico não poderá, naquela circunscrição, em hipótese alguma concordar com a gestante que pretenda impedir a atuação médica durante seu parto. Algumas agências sensacionalistas chegaram a divulgar que “o plano de parto está proibido”, ou que “o trabalho das doulas está proibido”. Não se trata disso. A parturiente escolhe a via de parto e pode, ainda, sim, optar pelo parto natural, ad

emais, em casa, se for de sua vontade, mas nenhum médico obstetra da circunscrição fluminense poderá concordar que este seja realizado sem supervisão e que haja impedimento de sua atuação, mormente em caso de risco para a mãe, ou para o bebê.

Muito se tem falado recentemente sobre as vias de parto, as possibilidades e atos de vontade das parturientes, mas, por incrível e mais absurdo que isso possa parecer, o assunto é tomado por generalismos e vieses político-ideológicos. O leigo assume a perspectiva de que no Brasil muitos profissionais obstetras são absolutamente conservadores em relação às vias naturais de parto, rechaçando-as - ao passo que a própria Organização Mundial da Saúde recomenda que o parto cirúrgico aconteça apenas como alternativa ao parto vaginal de alto risco. O confronto de opiniões causa confusão aos leigos; a parturiente fica, por vezes, confusa, e procura, então, um nicho específico de profissionais especialistas em vias naturais, quebrando o vínculo de confiança com o profissional que antes consultou.

Existe, ademais, a implicação dos termos “parto humanizado” e “violência obstétrica". Apesar da simples compreensão e ampla utilização, estes termos assombram as instituições de saúde e profissionais da classe obstétrica. Afinal de contas, o que pode ser interpretado como “desumano” e como “violência”?

Também no começo do mês de maio, um despacho do Ministério da Saúde, através da Secretaria de Atenção à Saúde, manifestou-se no sentido de que o termo “violência obstétrica” não “agrega valor e que estratégias têm sido fortalecidas para a abolição de seu uso”, levando a crer que o próprio órgão não acredita na ocorrência deste tipo de violência, preponderantemente hospitalar. Tal manifestação caiu como uma bomba, sendo absolutamente rechaçada pelo Conselho Federal de Enfermagem, Ordem dos Advogados do Brasil e Ministério Público Federal. O MPF, aliás, segue com inquérito civil, no qual ouve dezenas de mulheres vítimas deste tipo de violência. Na recomendação do MPF (em resposta ao Ministério da Saúde), há uma citação do documento onde está especificado um trecho que trata dos tipos de violência a que as mulheres são submetidas na hora do parto: “Relatos sobre desrespeito e abusos durante o parto em instituições de saúde incluem violência física, humilhação profunda e abusos verbais, procedimentos médicos coercivos ou não consentidos (incluindo a esterilização), falta de confidencialidade, não obtenção de consentimento esclarecido antes da realização de procedimentos, recusa em administrar analgésicos, graves violações da privacidade, recusa de internação nas instituições de saúde, cuidado negligente durante o parto levando a complicações evitáveis e situações ameaçadoras da vida, e detenção de mulheres e seus recém-nascidos nas instituições, após o parto, por incapacidade de pagamento”.

Ao nosso sentir, enquanto advogados, a maioria dos processos judiciais que abrangem o assunto “problemas decorrentes de parto” têm os fatos alegados acontecidos justamente no ínterim entre o trabalho de parto natural e a finalização do parto cesariano, quando se faz necessária a intervenção cirúrgica. Neste lapso muito pode acontecer: fatos que são igualmente naturais ao processo de parto[1], mas que, infelizmente, muitas vezes resultam em morte fetal e sequelas na gestante, ou na criança. Por isso, no Brasil, muitos obstetras atrelam suas expectativas de êxito ao processo cirúrgico recomendando, via de regra, a cesárea, como se esta fosse, realmente, a via mais segura. Contudo, como compreender que a cesárea pode ser mais segura, se não é isso que diz a Organização Mundial da Saúde, e que não é – definitivamente – esta a via mais utilizada nos países mais desenvolvidos? Será que meu obstetra é ambicioso demais?

É possível perceber que no Brasil a problemática deriva não da atuação da maioria dos obstetras – que realmente optam pelo parto cesariano, e assim “esclarecem” suas pacientes – mas da falta de informação e cultura da população assistida. Talvez possamos concluir que o médico obstetra não tem medo do parto vaginal: ele tem medo das consequências judiciais de um parto mal sucedido. De fato, apesar de todos os avanços da medicina e das telecomunicações, à maior parte da população ainda não foi permitido perceber que eventos naturais podem ter consequências insatisfatórias. A cultura do parto normal acontecerá quando a maior parte das mulheres tiver acesso à ampla gama de informações que, infelizmente, só as brasileiras financeiramente muito mais privilegiadas têm acesso. Ademais, não se trata apenas de informação em todos os termos possíveis, mas esclarecimento suficiente para que a parturiente possa se decidir e responsabilizar-se por sua escolha. O parto normal acontecerá em número maior neste País quando houver o devido apreço e consciência sobre os Termos de Consentimento Informado Livres e Esclarecidos, em que a parturiente expressará o consentimento sobre todos os riscos que corre – tanto no parto natural (incluso o normal), quanto no parto cirúrgico, - e compreenderá melhor os limites de atuação da equipe médica e de enfermagem. Nisto, sim, diferem os Países europeus, onde é culturalmente compreendido que a parturiente deve ter assistência multiprofissional antes, durante e depois do parto. Logo, após os primeiros exames, a gestante participa de treinamentos amplamente difundidos, e se submete a todo conhecimento e informação possíveis sobre os processos de gestação, parto e cuidados ao neonato. Lá, no processo de parto a probabilidade de insatisfação com falta de assistência, por exemplo, fica muito reduzida, pois o obstetra responsabiliza-se por acompanhar apenas os momentos que exijam atenção técnica e focada – como o parto de alto risco e a cirurgia cesariana. (A falta de assistência no trabalho de parto é uma das maiores causas de processos judiciais envolvendo obstetras no Brasil) Em um parto ideal, à equipe multiprofissional incumbe justamente acompanhar a gestação e o trabalho de parto desde o início (bem como “proteger” a parturiente de eventuais atos contrários à sua vontade), aliviando a carga de responsabilidade do profissional médico – que se exime do atendimento particular à gestante (e na prática dos plantões fica livre para atender outras pacientes ou, simplesmente, descansar – o que lhe confere melhor qualidade de vida).


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