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Foto do escritorHage Advogados Associados

Abandono afetivo: amor e seu preço

Trata-se de mais um caso que coloca o Brasil em vigília: um menino de onze anos perambulou até a morte pelas ruas de uma pequena e pacata cidade do interior do Rio Grande do Sul a procura de uma família que o acolhesse. Sim, é bem isso! O corpo do menino Bernardo foi encontrado enterrado em uma vala não muito distante daquele que era para ter sido seu lar.


As suspeitas são cruéis: uma madrasta enciumada na tentativa de apagar o passado de seu atual marido tira a vida do próprio enteado. O pai, por sua vez, negligente, tacitamente autorizou o fim brutal de seu filho.


Pois bem, sem adentrar ao mérito se o caso refere-se a protagonistas com distúrbios psíquicos, se houve ou não desacertos judiciais, há muitos “Bernardos” pelo Brasil, carentes de afeto, atenção, amor, ou seja, sem os cuidados mínimos que os genitores tem por obrigação lhes garantir para que cresçam saudáveis, tanto física como psicologicamente.


Voltados para uma decadência familiar cada vez maior, onde prevalecem valores materiais e não valores estruturais fincados em laços afetivos, é que doutrinadores, legisladores, psicólogos, psicanalistas, operadores de direito deram um xeque-mate ao descaso parental.


Hoje, perante a Justiça, os genitores podem ser responsabilizados civilmente (desde que estejam presentes, ato ilícito, o dano e o nexo de causalidade) e impingidos ao dever de indenizar monetariamente os filhos.


Isto se deve porque o dever dos pais não se limita apenas ao sustento, mas estende-se a obrigação de uma boa criação inserida no convívio familiar, proporcionando carinho, educação e segurança. É impositivo, conforme artigo 1634, incisos I e II do Código Civil e, assim, corresponde a um dever familiar, paterno-filial.


Ainda, nossa Constituição Federal, em seus artigos 226 ao 230, dispende atenção especial à família, ao considerá-la como base estrutural do Estado, incentivando o planejamento familiar e a paternidade responsável, que se traduz num direito-dever, significando mais do que a convivência e cuidados, mas a formação de vínculos eternos.


Por certo que há os defensores da paz familiar que questionam a penalização dos pais, pois, segundo eles, o desamparo aos filhos não configuraria ato ilícito, conforme prescrito nos artigos 186 e 927 do Código Civil.


No entanto, seguindo entendimento majoritário, a grande discussão da responsabilidade civil no âmbito do Direito de Família se refere à ordem moral, do afeto e do amor, encontrando amparo nos princípios da dignidade da pessoa humana, da afetividade, paternidade responsável, convivência familiar e do melhor interesse da criança.


Coincidência ou não, em 16/04/2014 (dias depois da morte de Bernardo), o Superior Tribunal de Justiça manteve decisão que condenou um pai a pagar indenização de R$ 200.000,00 por abandono afetivo, o que representa uma inédita oportunidade de pacificar o entendimento, ou seja, do dever de indenizar civilmente os casos de indiferença parental.


Para nenhuma surpresa, a defesa em casos como este, foca no argumento de que a punição deveria ocorrer apenas com a destituição do pátrio poder, o que convenhamos, para quem nunca se atentou a existência do filho, tal punição representaria mais uma premiação.


É inquestionável que o descumprimento dos deveres parentais acarreta danos psíquicos, além de materiais, pois um tratamento psicológico/psiquiátrico exige gastos financeiros.


E para alcançar tamanha dimensão é que as funções da reparação civil devem ser consideradas em três esferas: a compensatória, a punitiva e a desmotivação da conduta ilícita.


Não se trata em precificar amor e afeto, pois a dor do abandono em si não é passível de indenização, mas sim reparar a ausência causada pelo pai em decorrência da negligência e pela não convivência.


Com todo cuidado cercado pela Legislação, não há de se esquivar da realidade, pois um filho que se utiliza das vias judiciais para reparação por abandono afetivo, certamente passou anos mendigando amor, afeto e atenção de seus pais, que feriram sua autoestima.


Uma condenação judicial, certamente afastará ainda mais o relacionamento com o filho, mas uma vez que não foi construído pelas vias normais, não há como um filho aguardar o resto da vida qualquer recompensa.


Meros dissabores e desentendimentos em relacionamentos entre pais e filhos, não são passíveis de indenização, necessária a presença da conduta ilícita, ou seja, a infração as normas e princípios constitucionais.


Não houve tempo para amparar Bernardo ou repará-lo dos danos sofridos após a morte de sua mãe. Pelo contrário, ele pagou com a vida por aquilo que incansavelmente procurou.


Talvez se tivesse gozado da convivência de atos de amor, afeto, cuidado, de relações familiares saudáveis, o menino estaria assistido e acompanhado de seu pai em qualquer situação de vida e jamais teria um fim trágico.


Como dizia o grande poeta, Carlos Drummond de Andrade: , “A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos…”.


Silvia Hage

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